quarta-feira, 20 de maio de 2009

As propriedades de uma cadeira

por Rildo Ferreira


A cadeira está ali, imóvel, na minha frente. Um objeto indecifrável! Já reparou o quanto é difícil definir as propriedades de uma cadeira? Pois é. Aqui estou tentando decifrá-la. Devo começar falando que é feita de madeira. Mas aí vem uma questão: a madeira foi extraída de uma mata de manejo sustentável ou foi extraída de um estupro na mata atlântica? Quem cometeu esta barbárie foi um sujeito consciente ou é um daqueles sujeitos que faz qualquer coisa em nome da sobrevivência, e sem juízo algum, pratica o crime para esnobes indivíduos com obsessão pelo acúmulo de capital?

O fato é que saber se a origem da madeira é de um lugar ou de outro; se o sujeito que a cortou é consciente ou manobrado, não explica as propriedades da cadeira. Ela continua ali, pateticamente fria. Eu tentando decifrá-la e ela me ignorando. Talvez se eu tomasse outro caminho. Dizer que ela tem a semelhança do número quatro verticalmente invertido e que possui um assento e um encosto etc. Não, não. Isso não define as propriedades de uma cadeira. A minha dúvida maior está em saber se eu digo que ela tem quatro pés ou quatro pernas. Isso! Olha para uma cadeira e me diga se ela tem pés!... Eu olho para os meus pés e olho para uma cadeira e me pergunto: onde estão os pés de uma cadeira? Não os vejo. Ali vejo quatro bases que mais se assemelham as pernas de um Homo sapiens. Na verdade eu penso que a cadeira tem quatro pernas, sendo que duas se alongam em coxas que sustentam o encosto. Talvez seja assim: as duas pernas dianteiras sustentam na extremidade superior um tampo que chamamos de assento. Este tampo também se apóia entre as pernas e as coxas da base traseira, ali, onde seria o joelho caso a cadeira tivesse joelhos.

Mas o fato é que a cadeira possui assento e encosto. O assento assegura o repouso de uma pomposa bunda. Ou não tão pomposa assim. Depende do indivíduo que ali repousar a sua bunda. O assento deve medir uns 40, 50 centímetros de largura. Essa questão da medida, por exemplo, é uma herança do paradigma fordista de produção, onde tudo o que era produzido era feito em grande quantidade, de um mesmo modelo, e que deveria servir para todo mundo. Assim as cadeiras são feitas com assento de... Vamos definir 50 centímetros. Pronto! Todo mundo deve ter uma bunda em que a medida do meio de uma das coxas até a posição mediana da outra, passando pela região glútea da bunda, não seja superior a 50 centímetros. Coitado dos gordinhos! Aqueles que têm bunda maior que 50 centímetros terão que se contentar em deixar parte dela fora da cadeira. Então, os que têm bunda de 80 centímetros, por exemplo, deve ter o cuidado de colocar-se numa posição em que deixa para fora da cadeira 30 centímetros, sendo 15 centímetros para cada lado –mais ou menos.

Bem, mas dizer que uma cadeira é feita de madeira, sem se importar se a madeira foi extraída de uma mata com manejo sustentável ou da violação patrimonial da mata atlântica; e dizer que ela possui quatro (pés ou pernas?) pés, por convenção; que tem um assento padrão de 50 centímetros sem dar-se conta de que existem bundas maiores que essa medida e que possui um encosto de medida variável, conforme o desejo do fabricante, nunca de quem vai se sentar nela, ainda não define propriamente uma cadeira. Se eu dissertasse mais sobre os caminhos percorridos pela madeira que foi extraída Deus sabe-se lá de onde, e que ela percorreu caminhos que passou por uma barreira militar e que o condutor, ciente do seu papel de levar a madeira para construir cadeiras, deixou uma propina para o guarda que deveria fazer cumprir a lei de preservação ambiental; chegou a uma madeireira que cortou os troncos de árvores em tiras às quais damos o nome de tábuas; e que elas foram recortadas em pedaços menores, aparadas, lixadas, medidas, (re) recortadas, furadas, coladas e que tomou a forma de um quatro verticalmente invertido com um assento para uma bunda padrão de 50 centímetros de largura, produzida numa grande fábrica que adotou o modelo fordista de produção empregando trabalhadores em condições precarizadas, salários aviltados e explorados ao extremo; e ainda, que ela foi levada para uma loja de uma grande rede que também explora seus empregados, e determinou que a margem de lucro da cadeira seria igual ou superior a 20 por cento, e que vai ser vendida para alguém que deveria ter uma bunda de até 50 centímetros medida de região mediana de uma coxa a outra, e que vai servir para sustentar essa bunda enquanto o indivíduo que a possui possa se alimentar mais ou menos ao meio dia, eu talvez me aproxime da definição das propriedades de uma cadeira. Aurélio definiu simplesmente assim: “Peça de mobiliário que consiste num assento com costas, e, às vezes, com braços, dobrável ou não, para uma pessoa”. É uma definição segundo uma classe hegemônica. Indivíduos mais ajuizados contextualizam para decifrar o enigma que é a propriedade de uma cadeira. Os da classe hegemônica, como definiu Ricardo Antunes, “os que vivem da força do trabalho” alheio, vêem a cadeira como um simples objeto. Já a maioria não-hegemônica, “os que vivem da força do trabalho” [da troca da mão-de-obra por salário], vêem a cadeira como um produto do seu suor, algo assim valorável (essa palavra existe ou é um neologismo?), um objeto pelo qual se apaixona assim que fica pronto.

Estou me sentindo ridículo, mas não consigo dizer com simplicidade as propriedades da cadeira. Ainda tenho dúvidas quanto aos pés (ou pernas) de uma cadeira. Ficaria absurdamente estranho dizer que eu, ou você, nos encostamos (de colocar as costas em) nas coxas de uma cadeira. O fato é que ela não deve ser feliz. Ela pode ter sido vítima de um estupro florestal e acabou sendo obrigada a dar repouso para a única parte do corpo onde um indivíduo possui um órgão para excretar toda a merda que faz. Inclusive derrubar árvores de onde não deve; de dar propina para sustentar o processo de corrupção e perpetuar o já mundialmente conhecido jeitinho brasileiro de ser e de exploração extrema do trabalho alheio.

Ridículo ou não, eu não posso dizer com poucas palavras, como Aurélio Buarque de Holanda, as propriedades de uma cadeira. Você é capaz?

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